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Sunday, February 24, 2008

Luto [incenso de rosas]

Um telefonema, no meio da madrugada, anunciou a retirada de metade do chão em que eu piso: meu pai acabara de morrer.

Dois dias antes, entretanto, eu já sentia o piso em falso. O diagnóstico, enfim pronto, após dois dias de angústia, não anunciava o resultado mais agradável que um parente revestido de carne e osso deseja ler. Mas precisei driblar minhas emoções, meu desespero mascarado por uma dose cavalar de calmantes, e correr para ajudar meu pai. Ele, sedado, em um leito de UTI, me pediu em pensamento: "minha filha, seja forte. E me ajude. Procure forças no seu mais íntimo desconhecido e anuncie a minha partida aos espíritos para que eles venham aqui me buscar". E eu ouvi. E como ouvi, pai!

E eu, que desconhecia o meu lado forte, saí para tentar atender o último desejo do meu pai. Logo eu, que não cria nem um pouco na minha força espiritual e andava com a fé quase que completamente jogada ao vento, logo eu, fui a escolhida pelo meu pai para ser sua interceptadora na passagem da vida terrena para a Erraticidade. Eu, que não era o pilar da família e tampouco a protegida, me vi diante da missão mais importante da minha vida.

Atendi ao desejo do meu pai. Consegui, enfim. Convoquei, com a ajuda de muitos, de quase todos, a luz de que ele precisou no seu ritual de passagem. E ele se foi em paz. E veio aqui em casa, no meio da casa, envolver nossa família em um abraço forte cheirando a incenso de rosas, agradecer pelo amor dedicado a ele durante todos esses anos e pela força dada nos últimos momentos. Era ele, eu sei. E após a sua visita, me senti envolvida por um manto de paz. E tive a certeza de que o meu pai foi para um lugar muito melhor que aqui, o que me consolou e renovou minha fé de forma arrebatadora.

Algumas horas depois, o telefone tocou: meu pai estava clinicamente morto. Mas o meu coração dizia: ele está muitíssimo vivo. E estará olhando por mim pra sempre.

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Na madrugada, fui encontrar o corpo do meu pai. Não o meu pai; ele eu havia encontrado algumas horas antes de uma forma inexplicavelmente maravilhosa.

Abri o guarda-roupa e, obviamente, na minha condição de humana, me veio um aperto no coração: deveria escolher a roupa com que o corpo do meu pai seria sepultado. Entre lágrimas, escolhi, então, vesti-lo de azul, que era a sua cor favorita. E enviei os trajes pelo meu tio, que foi tratar com a casa funerária.

Eu fiquei em casa, incrédula nas coisas que haviam acontecido. Tomei um banho frio e fui me vestir para ir ao cemitério. Vesti uma roupa com que o meu pai gostava de me ver. Consegui até ouvir a voz dele: "minha filha, você está tão bonita..." Prendi o cabelo também, como ele gostava.

Quando cheguei ao velório, a surpresa: constatei que, de fato, ali não era mais meu pai. Seu corpo estava irreconhecível. Sem a pulsão de vida, aquele corpo definitivamente não era o meu pai. Irreconhecível.

Como num ritual de despedida, um ritual de que eu, na minha condição de encarnada com falhas morais (entre elas o egoísmo), precisei naquele momento, arrumei as flores brancas sobre o corpo do meu pai. E beijei aquele corpo, que tinha me levado no colo tantas vezes, que tinha me abraçado tantas vezes, na testa, como fazia todos os dias quando o meu pai estava aqui. Ainda havia calor.

E fiquei aguardando, com a minha mãe e a minha irmã, as horas que não findavam passarem e as pessoas chegarem para nos darem seu abraço de pesar.

(...)

Na hora do sepultamento, senti enfim o final do ritual. Fiz questão de escrever na lápide do meu pai. E, enquanto escrevia, me veio à cabeça o seguinte pensamento: Há 23 anos, meu pai havia escrito, tanto física (na certidão de nascimento) quanto espiritualmente (na concepção), a minha vinda da Erraticidade para a Terra. E, naquele instante, eu havia escrito, tanto fisica (na lápide)quando espiritualmente, a passagem do meu pai da Terra de volta para a Erraticidade. E me senti orgulhosa por ele ter confiado a mim o seu último desejo. E lembrei das últimas palavras que ele me disse, no leito da emergência, ao me ouvir dizer que o amo muito: "minha filha, não chore!"